O GÉNIO
A vida consiste no equilíbrio de duas forças, a de integração e a de desintegração, o anabolismo e catabolismo dos fisiologistas. A anulação da força de desintegração (impossível na matéria orgânica) seria a não‑vida (e, é por isso, que é impossível na matéria orgânica); a anulação da força de integração é a morte.
Como o espírito é uma coisa viva (e existe ligado a uma outra coisa viva, que é o cérebro e o sistema nervoso, e, enfim, o corpo), no espírito operam, como em toda a vida, estas forças de integração e de desintegração. E, como no corpo, a anulação da desintegração seria a não existência do espírito; e a anulação da integração o que chamamos loucura.
Quanto mais alto um organismo na escala evolutiva, mais complexo é esse organismo; quanto mais complexo mais desintegrável, mais são as forças de desintegração que tem dentro de si. Do mesmo modo, quanto mais alto um espírito, tanto mais complexas as forças de desintegração que em si tem. Só por um agente tóxico, ou um traumatismo violento, podem os animais «endoidecer» — isto é, só por uma desintegração anormal. Aparte isso, não são susceptíveis de loucura; a desintegração do seu espírito é simples, a integração faz‑se sempre sem esforço.
Em que consistem as forças de integração no organismo físico? Na resistência fácil e rápida de qualquer agente interno que tente desintegrá‑lo (como no instinto de saciar a fome e a sede, etc.); e na coordenação fácil e rápida dos seus órgãos no sentido de defenderem o organismo, de não tomarem, por assim dizer, caminhos independentes que lhe seriam forçosamente nocivos.
Do mesmo modo, as forças de integração do espírito são: a resistência fácil e rápida a qualquer agente externo que tente desintegrá‑lo; a inibição dos seus impulsos anormais; e a coordenação das suas ideias numa unidade. Os dois últimos pontos são claros; não o é o primeiro. De que modo resiste o espírito a uma força externa que o queira prejudicar? (Distinção entre o subjectivo e o objectivo.) (Achar a solução).
Quando num indivíduo se dá um desenvolvimento das faculdades mentais de integração, nem que haja um desenvolvimento paralelo das faculdades mentais de desintegração, esse indivíduo é o que se chama um homem de talento. Não havendo um desenvolvimento mais que normal das qualidades de desintegração, o maior desenvolvimento das de integração não é chamado a operar em plena força; tem plena força, mas opera mais lentamente do que poderia.
Quando, porém, com esse grande desenvolvimento das qualidades de integração coexista um desenvolvimento igualmente grande das de desintegração — isto é, uma psiconervose — , as qualidades de integração passam a funcionar rápida e profundamente, para se não deixarem arrastar pelas outras. Dá‑se, pelo equilíbrio hipersão de um fenómeno mórbido, uma hiperharmonia do espírito. A essa hiperharmonia chamamos génio.
Quer isto dizer que não haja homens de talento com psiconervoses? Não. Mas há duas maneiras de a psiconervose coexistir com um excesso de faculdades de integração.
O exame das épocas históricas mostra‑nos que os génios aparecem com mais frequência, nas épocas de desintegração social. Dir‑se‑ia, à primeira vista, que a desordem os gera. Não parece, porém, que assim seja; antes os gera a tendência para resistir à desordem, que não pode ser acentuada senão quando se acentuar a desordem a que resistir.
s.d.
- 191.Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).
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